Carta Régia de 30 de Abril de 1625
Surge assim uma primeira intervenção Real. Por Carta Régia de 30 de Abril de 1625, o rei D. Filipe III mandou preparar uma Lei "…proibindo que pessoa alguma possa andar em Lisboa em macho ou mulla de sella ou liteira, salvo indo de caminho, e que se defenda de todos os coches de mullas e machos, nem os possa haver de cavallos, sem licença minha…" Em Carta de Lei de 1 de Agosto de 1625 é publicada a Lei "…passados seis meses da publicação desta Lei em diante, nenhuma pessoa, de qualquer qualidade, dignidade, e preemência que seja, ande na Cidade de Lisboa em machos ou mullas de sella, nem liteira, salvo indo de caminho, nem coche seu, nem emprestado…sob pena de perdimento dos ditos coches, mullas, e machos, e cavallos, ametade para captivos e outra para quem o acusar, ao que será admitido qualquer Povo…" 3
Após a sua reformulação (Carta Régia de 2 de Setembro de 1625) e alteração (Carta Régia de 17 de Setembro de 1625 "…assentarem as cousas que tocam ao exercício de gente de cavallo, de maneira que cessem contendas…") a Lei é 4
suspensa por dois meses através de Alvará de 13 Março de 1626 "…hei por bem que por tempo de dous mezes se suspenda a Lei que mandei passar sobre a prohibição dos coches…" Adivinham-se resistências ao cercear da comodidade, da mobilidade e da liberdade de circulação… Adivinha-se descontentamento… Mas o rei não se deixa intimidar. São, então, tomadas medidas definitivas e de grande determinação. Por carta Régia de 31 de Março de 1626, volta a vigorar a Lei… "…que a Lei passada sobre a proibição dos coches e mullas de sella se cumpra, como nella se contém, passados os dois mezes que prorogaram, e se acabam em 18 de Maio…" 5
Mas… a Portaria de 13 de Maio de 1626 volta a suspender a Lei por mais um mês. "…que a Lei da prohibição dos coches, andas, mullas e machos de sella, se suspenda por todo o mez de Junho…" E mais dois meses… Alvará de 29 de Junho de 1626 "…e me apraz de prorogar mais dous mezes de tempo, nos quaes se não executará a dita Lei, se antes disso não tomar resolução na consulta que sobre este negócio se me fez, acerca da pertenção que os Ecclesiasticos e Ministros da Milícia da Coroa de Castella, que residem neste Reino, tem de se não intender nelles a dita Lei…" 6
Parece que agora os problemas maiores são colocados pelos eclesiásticos e Ministros da Coroa de Castella que residem em Lisboa, no cantinho lusitano … E o Rei vê-se obrigado a suspender a Lei por Portaria de 21 de Agosto de 1626 "…que a execução da Lei sobre os coches, liteiras, machos, mullas de sella, se suspenda, até haver outra ou ordem de Sua Magestade…"! Mas logo no dia seguinte, por Carta de Lei de 22 de Agosto de 1626, é publicada nova Lei de proibição (muito semelhante à de 1 de Agosto do ano anterior) "…hei por bem e mando que da publicação desta Lei em diante, nenhuma pessoas ande na Cidade de Lisboa em machos ou mullas de sella, nem liteira salvo indo de caminho, nem coche seu, nem emprestado, de mullas, machos, nem de cavallos, sob pena de perdimento dos ditos coches, mullas, machos, e cavallos, ametade para captivos e outra ametade para quem os accusar, ao que será admitido quaquer do Povo…derogo quaesquer privilégios e liberdades, que em contrário haja…" 7 8
O Rei, decididamente, dava por encerrada esta questão, embora as resistências à aplicação da Lei continuassem, como é legitimo deduzir pela publicação da Carta Régia de 10 de Março de 1627 "…sobre o bando que D. Fernando de Toledo…mandou lançar nessa Cidade, acerca da prohibição dos coches, …se não faça alteração alguma nela…". Mas é fácil supor que este assunto era polémico, de difícil aceitação e que a acalmia tardava. Na esteira do desenvolvimento e na óptica de que "se não os podes vencer, junta-te a eles", lentamente foi-se procedendo ao alargamento das ruas e ampliação ou demolição de vários arcos e portas da cidade, assim como ao arrasamento de casas e prédios, com o objectivo de melhorar a circulação rodoviária, o que mereceu grande atenção por parte das autoridades da época. E, realmente, urgia tomar medidas, pois vários problemas se colocavam no quotidiano da cidade. Por exemplo era frequente quando dois coches, circulando em sentidos opostos, se encontravam ao longo de uma rua sem que a largura desta permitisse o seu cruzamento, surgir inevitavelmente uma discussão sobre qual deles havia de recuar, discussão que atingia por vezes as proporções de um violento conflito, com richas e cenas de pancadaria entre lacaios, nas quais, por vezes intervinham também os amos, alargando-se frequentemente aos mirones que tomavam partido na contenda. Chegaram aos nossos dias relatos de alguns aspectos pitorescos retratados no "Memorial de Pêro Roiz Soares, I" que aqui se reproduzem:
- "Em 1679, nos primeiros dias do mês de Outubro, encontraram-se numa rua apertada duas carruagens, na primeira das quais viajava o marquês de Niza e 9
o conde-barão de Alvito, e na segunda o marquês de Fontes. Pois bem: três longas horas ficaram os veículos parados em frente um do outro, sem que qualquer dos seus ocupantes cedesse na passagem, enquanto na rua os respectivos criados quase chegavam a travar luta. Para que a questão se resolvesse foi preciso intervir o rei que a ambos mandou recuar e recolher imediatamente a suas casas. A celeuma provocada pelo incidente foi de tal ordem que levou Mons. Jorge Cornaro a comunicá-lo para Roma"; - "Mais curioso ainda foi o caso ocorrido entre o duque de Aveiro e o conde de Vidigueira em 11 de Novembro de 1654, o qual se encontra descrito numa relação manuscrita existente na Biblioteca Nacional de Lisboa. Aconteceu que se encontraram estes dois fidalgos na mesma situação embaraçosa que os anteriormente citados e travaram luta entre si para a resolverem pretendendo, porém, cada um deles, dar a primazia ao outro…". Visando a minimização destes conflitos D. Pedro II decretou, em 13 de Setembro de 1986, que " …achar em alguma rua contendas sobre a passagem, ou recuamento, prendam as pessoas, qualquer qualidade que sejam…"
Mas D. Pedro II foi mais longe e é no seu reinado, mais concretamente a 22 de Outubro de 1686 que, através de Carta de Lei, estipula aquilo que poderá ser considerado como a primeira regra de um "Código da Estrada" e que respeita à cedência de passagem no caso de cruzamento de veículos, estipulando "…que encontrando-se em ladeiras coches, seges ou liteiras, aonde, pela estreiteza da rua, seja preciso recuar algum delles os que forem subindo sejam os que recuem, pela maior difficuldade que tem os que vem baixando; e que se demarquem por pessoas praticas todos os passos… e que naquella mesma parte em uma das paredes se ponha padrão, em que estará escripto com 10
clareza quem deve recuar…" As pessoas que não cumprirem "…serão degradadas por tempo de cinco annos para as Praças da Bahia, Pernambuco, ou Rio de Janeiro, e pagarão 2:000 cruzados…E succedendo que algumas das ditas pessoas sobre as mesmas duvidas de recuarem, aonde o devem fazer, cheguem a puchar pelas espadas incorrerão nas penas dos desafios…". Cria e afixa padrões que são inegavelmente os primeiros sinas de trânsito "…e que naquella mesma parte em uma das paredes se ponha padrão…" 11 12
Desses padrões, que foram dos primeiros sinais de trânsito afixados em toda a Europa, pode-se encontrar ainda um único exemplar, sobrevivente do terramoto de 1755, que pode ser visto numa parede da rua de São Salvador na zona do Castelo
e que reza o seguinte: 13
ANNO DE 1686 SVA MAG ORDENA Q OS COCHES SEGES E LITR
Contudo o aparecimento do primeiro automóvel aproximava-se a passos largos e com ele novos problemas que apresentavam novos desafios para a sua 14
resolução. Desafios que se mantêm actuais na procura constante de uma melhoria da circulação e segurança rodoviárias. Ontem como hoje. Não se pode travar o progresso! Mas pode-se enquadrá-lo com normas e regras que permitam a sua evolução harmoniosa e consonante com as liberdades individuais e colectivas. Temos o passado com projecto de futuro, retratado no presente! AS Q VIEREM DA PORTARIA DO SALVADOR RECVEM PA A MESMA PARTE Existiram outros padrões similares, noutros locais, como na Calçada de S. Vicente, S. Tomé, Largo de Sta. Luzia que, infelizmente, não resistiram ao tempo. Mas reza também a história que o rigor imposto pelo rei e as sanções a que ficavam sujeitos os infractores não tiveram grande efeito prático. A lei foi desprezada e houve negligência daqueles a quem competia fazê-la cumprir. Porque vinha afectar, também, o seu próprio conforto? Pergunta sem resposta e que nos leva a reflectir, relativamente aos problemas actuais, no velho provérbio "quem sai aos seus não degenera"… Infeliz e ironicamente só do terrível cataclismo que afectou a cidade em 1755, surgiram soluções mais eficazes, mesmo que forçadas. A destruição pelo terramoto, pelo tsunami e pelos incêndios consequentes que devastaram grande parte da cidade, sobretudo a Baixa, forçaram a sua reconstrução. E aí, com a grande visão do seu principal obreiro, o Marquês de Pombal, surgiram ruas largas e espaços amplos que iriam facilitar a complicada circulação citadina e preparar o futuro. Foi um processo longo e moroso, próprio das grandes obras, sendo que durante o seu desenvolvimento ainda foi decretado, em 1761, que só personalidades equiparadas às primeiras dignidades da Igreja ou embaixadores de potências estrangeiras, se podiam deslocar em Lisboa ostentando o luxo que se encontrava associado ao fausto das comitivas que era frequente encontrar nas deslocações de coche. Era-lhes concedido o estatuto de excepção ao mesmo tempo que ordenava que "…nenhuma pessoa de qualquer condição que seja possa andar na cidade de Lisboa, e dentro da distância de huma legoa della, em carruagem de mais de duas bestas, sob pena de perdimento da carruagem, e bestas, que nella forem…". Fontes: - Barreiros, Cremilde De La Rosa: Poesia Calcada, Poesia Calcária - Castelo Branco, Fernando: Lisboa Seiscentista - Castilho, Júlio: Lisboa Antiga, volume I - Marques, Paulo Rodrigues, Presidente da ANSR – Fotografia Internet: - Sitio: Ius Lusitaniae - Fontes Históricas do Direito Português - Sitio: Olhares.aeiou
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